Cláudio dell'Orto*
Ao editar o Motu Proprio que
alterou o Código Penal do Vaticano, o papa Francisco promoveu um dos maiores
avanços da história da Igreja Católica Apostólica Romana. A medida,
contemplando a aplicação de penas em casos de crimes contra crianças e
adolescentes, tortura e lavagem de dinheiro, reduz sensivelmente a defasagem
cronológica do sistema jurídico da Santa Sé.
Tal anacronismo era
tão enfático que a própria comunicação oficial das medidas, feita pela Rádio do
Vaticano, salienta que as novas leis alinham-se aos seguintes pactos internacionais:
a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; as Convenções de Genebra
de 1949, contra os crimes de guerra; a Convenção Internacional de 1965 sobre a
eliminação de todas as formas de discriminação racial; a Convenção de 1984
contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes; e a Convenção de 1989 sobre os direitos da criança e seus
protocolos facultativos de 2000. Ou seja, adéqua-se o Vaticano a normas e
princípios implantados há muito tempo na maioria dos países ocidentais.
Ao efetivar as mudanças às vésperas de
sua visita ao Brasil, o Sumo Pontífice ratifica perante o mundo a sua
disposição de combater, com a justiça dos homens, os problemas que têm afetado
a Igreja nas últimas décadas e suscitado dúvidas quanto à sua coerência na
aplicação de cânones religiosos. Ao ignorar no plano do direito as numerosas
denúncias de pedofilia e de desmandos e desvios de recursos em seu banco
oficial, o Vaticano comprometeu perante muitos a sua credibilidade como porta
voz do Evangelho. Especialistas acreditam que muitos católicos romanos migraram
para outras igrejas cristãs em razão desses problemas mundanos que ganharam
repercussão midiática.
A tipificação dos delitos de tortura e
lavagem de dinheiro e a definição clara dos tipos de crimes contra crianças e
adolescentes, incluindo o tráfico humano, prostituição, violência e atos
sexuais, prática e divulgação de pornografia, ganham relevo porque revelam a
busca de uma jurisdição penal mais eficiente num ambiente que deveria ser
marcado exclusivamente pela religiosidade. Reconhece-se a necessidade da
justiça humana para assegurar um ministério religioso de maior credibilidade
perante os fiéis.
Outro aspecto importante do Motu
Proprio foi a extinção da sentença de prisão perpétua, considerada inútil
e desumana pelo pontífice. Adota-se um regime semelhante ao do Brasil, com pena
máxima de 30 anos, como aqui, ou de 35 anos de privação de liberdade. O novo
código também inclui dispositivos específicos para crimes contra a humanidade,
abrangendo o genocídio e a segregação racial.
As medidas inovadoras, que entram em
vigor em 1º de setembro, serão aplicáveis, como tradição do Estado pontifício,
sob a égide do princípio da personalidade, não apenas no território do pequeno
Estado incrustado na cidade de Roma, como também em todo o mundo. Isso
significa que um padre que cometa um dos crimes previstos dentro de qualquer
estabelecimento da Igreja, em qualquer país, estará sujeito, também, ao
julgamento e punição pelo sistema judiciário do Vaticano. Assim, além da
incidência do Direito Penal do país onde a infração for cometida, opera-se a
incidência da legislação do Vaticano, conforme a possibilidade concreta de
exercício da jurisdição. Aumenta-se a possibilidade sancionatória,
considerando-se qual dos Estados soberanos puder capturar o criminoso.
Ao adotar esse avanço legal, a Igreja
revitaliza-se perante seus membros, valoriza-se institucionalmente e no âmbito
das relações multilaterais e ratifica um conceito universal pétreo: em
quaisquer circunstâncias, mesmo que servindo a Deus, os homens não podem viver
sem Justiça.
*Desembargador
Cláudio dell´Orto é o presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Rio
de Janeiro (AMAERJ).
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